A mina jazia escondida nas profundezas do subterrâneo, com mais de vinte quilómetros em galerias, ligada ao exterior pelos dois poços principais; o Poço de Santa Bárbara por onde arreavam os homens, os machos e os materiais e o Poço 1, no extremo norte, por onde se efetuava a extração de todo o minério.
Nos anos sessenta ninguém nas Minas sabia de luta de classes, mas a geografia dos bairros era rigorosamente hierarquizada por degraus de acordo com a condição socioeconómica. O almoço na festa de Santa Bárbara em casa dos patrões para a aristocracia de Lisboa era copioso. O sentimento de injustiça absorvido pelas crianças é irremediável.
Na escuridão da mina não existia medo; os marteleiros faziam uma “pega“ completa de furos com um metro e meio de comprido, seguia-se no turno da tarde o carregamento do fogo com os explosivos a serem colocados na boca dos furos com a mão (…).
As mulheres dos trabalhadores residentes tinham regra geral uma catrefada de filhos, que vestiam e alimentavam, ao mesmo tempo que faziam a lide doméstica, lavavam a roupa no Tanque, ajudavam nas hortas e tratavam dos recos.
Nos dias de ventania levantava-se do Branquinho, daquela imensa escombreira de estéril, uma poeira espessa e intensa num redemoinho incessante que fustigava os bairros, atin- gindo os olhos e as narinas dos residentes. Infelizmente o Branquinho galgou terrenos e contaminou águas e lameiros, até as trutas-de-rio do Tinhela deixaram de prestar abaixo da ponte do Borralheiro.
Os nossos pais transmitiam insatisfação e revolta. Eram gente valente e assombrada, to- lhidos talvez por um certo temor reverente e pelo receio das suas famílias. O mundo vivia uma década de convulsões e mudanças e no país a emigração e a guerra colonial perpas- savam entre nós. A ditadura e a igreja estavam entranhadas. Não podíamos continuar cegos e nus. Em 1974 o medo retardou a liberdade.
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É difícil imaginar maior dureza de trabalho do que a destes homens simples, encafuados num buraco lôbrego e alumiados por uma ténue luz que provinha do gás acetileno produ- zido da mistura de carburetos com água no gasómetro.
Desde a infância, o meu olhar fixou-se enternecido na singularidade daqueles mineiros destemidos que quando despegavam do trabalho da mina, passavam diante de nós molha- dos e sujos de lama, com os rostos fuliginosos, de capacete na cabeça e o gasómetro dependurado no ombro pelo gancho.
As minas encerraram maldosamente em outubro de 1992 com muitas toneladas de ouro no seu interior.
Das Minas, sabe-se o que resta hoje; morde-se a língua com a pobreza e o desemprego ou quando se ouve chamar de forma tremendamente hiperbólica Faixa de Gaza ao Bairro da Saíça.
Cinquenta anos depois do 25 de abril de 1974, começa a perder-se, talvez, o gume desse passado, mas esse tempo não foi indiferente: o vigilante Sr. Vitorino e a sua esposa Sra. Alice, que moraram no Bairro da Saíça, onde tiveram muitos filhos, registaram e batizaram o filho que nasceu a 25 de Abril de 1975 com o nome Manuel da Liberdade.
Número de páginas: 196